Marcello, o italiano comum

marcello2

Marcello Mastroianni não representava nas telas apenas o típico galã italiano, cujo charme irresistível arrebata os corações femininos. Seus papéis, em geral, são a síntese do homem moderno do século 20, dominado pelas angústias e inquietações da existência. Como playboy ou operário, barão ou jornalista, solitário ou conquistador, Marcello era universal e queria conquistar não só as mulheres, mas a plateia como um todo.

Em 57 anos de carreira – de extra não creditado em Marionette, de 1939, até os três personagens vividos em Três Vidas & Uma Só Morte, de 1996, ano em que faleceu -, estrelou mais de 140 filmes, tendo ainda um lançamento póstumo em 1997 – Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira. A grande lembrança que fica do ator, contudo, é a do período entre meados dos anos 1950 até a década de 1970, quando trabalhou com uma geração de diretores italianos que soube moldar a herança neorrealista às novas tendências da sociedade, sejam elas psicológicas, políticas ou sexuais. Apesar da importância de Dino Risi, Elio Petri, Ettore Scola, Federico Fellini, Mario Monicelli, Michelangelo Antonioni, Pietro Germi ou Valerio Zurlini, o cinema moderno italiano, queira-se ou não, possui o rosto de Marcello.

Embora sem a presença física do compatriota Gian Maria Volonté ou do sueco Max Von Sydow, só para ficar em europeus, Marcello ganhava o público por aparentar-se homem comum, com uma beleza mundana – inúmeras mulheres vão discordar de mim, eu sei. As atuações contidas, porém fortes, sem grandes afetações até mesmo em personagens próximos da caricatura, faziam-no ideal para o papel do burguês deslocado da realidade, e crítico da ostentação de sua classe social, que desempenhou em três de seus mais famosos longas – A Doce Vida, A Noite e 8 ½. Não à toa, dois desses são de Fellini, nome essencial na carreira do ator.

ottoemezzo

Guido, de 8 ½, tenta domar as mulheres de sua vida

A amizade com o diretor começou nas filmagens de A Doce Vida, lançado em 1960, e durou a vida inteira, atingindo o ápice profissional em 8 ½, de 1963 – mesmo este não sendo o melhor filme de ambos. Era comum Fellini inserir temas estritamente pessoais nos roteiros que escrevia – Amarcord, em que revisita a própria infância, que o diga. Com 8 ½ não seria diferente: o cineasta narra as próprias inseguranças, indagações e traumas em relação ao sexo feminino por meio do personagem Guido Anselmi, também realizador de cinema e que passa por um bloqueio criativo. Temos, então, uma situação curiosa: dois grandes amigos, um interpretando o alter ego do outro. Difícil encontrar na história uma relação tão íntima entre diretor e ator.

Mais curioso ainda é notar que a melhor interpretação de Mastroianni não se dá ao lado de Fellini – e não falo do escritor em crise conjugal Giovanni Pontano, protagonista de A Noite, de Antonioni. Ferdinando “Fefè” Cefalù, o barão siciliano de Divórcio à Italiana (1961), filme de Risi, é uma conquista cinematográfica. Entediado com a esposa nada atraente, o personagem se apaixona por uma jovem, e bela, prima que passa o verão no palacete da família. Como nos idos dos 1960 o divórcio não existia na Itália, a única solução para se ver livre da mulher é matá-la. Fefè, obviamente, não quer passar muito tempo na cadeia e prepara um plano mirabolante: alegará que o crime ocorreu em defesa da honra, pois estaria sendo traído. Para tal, precisa encontrar um amante para a esposa.

Uma trama rocambolesca desse nível era o que o ator precisava para construir uma performance cômica memorável, baseada em maneirismos sutis. Ao contrário da pompa conferida pelo título de “barão”, Fefé não passa de um ser patético, um homem inconsequente com ideias infantis. O bigode fino, o cabelo emplastrado de brilhantina e um tique nervoso com a boca dão o toque visual necessário para uma figura deprimentemente hilária. Richard T. Jameson, critico americano, define o personagem com precisão: “um maníaco conspiratório, um Groucho Marx movido a analgésicos”.

Fefè imagina formas de matar a esposa…

…e continua a executar seu plano absurdo

A grandeza de Marcello está aí, na capacidade de criar vozes únicas a pessoas totalmente ordinárias. Vivia um professor sindicalista (Os Companheiros, 1963, de Monicelli) ou um galanteador de meia-idade (Cidade das Mulheres, 1980, de Fellini) com a mesma sensibilidade e sofisticação; fazia comédias com Sophia Loren e filmes políticos com Petri transmitindo emoções genuínas à plateia – como não sentir o coração sangrar quando o romântico de Noites Brancas (1957, de Luchino Visconti) tem de encarar seu destino solitário?

Marcello era um italiano comum. O maior de todos os italianos comuns.

mastroianni_fellini

Mastroianni e Fellini: uma das mais importantes parcerias diretor/ator do cinema

Um comentário em “Marcello, o italiano comum

  1. João Luis Pinheiro disse:

    Adorei seu texto Thiago. Impossível não simpatizar e se emocionar com este magnífico ator chamado Marcelo Mastroiani. Parabéns!

Deixe um comentário