Queimada! (1969), de Gillo Pontecorvo

Como prometido, começo a postar textos meus publicados em antigas versões do Cinefilia. Para começar, já que a Cinemateca Brasileira, em São Paulo capital, está com uma mostra imperdível de clássicos – em que será apresentado o filmaço A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo -, fiquem com a análise de Queimada!, grande obra deste indispensável diretor italiano.

Os créditos iniciais de Queimada! uma colagem de imagens onde escravos negros lutam contra soldados armados e são mortos por estes, ao som épico e psicodélico de uma peça do maestro Ennio Morricone (veja na íntegra abaixo) – possuem um interessante efeito gráfico semelhante a sangue escorrendo pela tela (a cor vermelha ajuda essa interpretação). Aí, já está toda a temática do filme: a opressão do homem branco e o derramamento do sangue de inocentes para saciar sua, aparentemente insaciável, sede de poder.

Queimada! é um filme simples e complexo ao mesmo tempo. Simples, pois sua trama pode ser facilmente acompanhada, apesar da grande riqueza de detalhes históricos. E complexo, afinal, existem profundas camadas de análise e reflexão a respeito do Colonialismo e Imperialismo europeu. Reflexão dura e amarga, feita por Gillo Pontecorvo, um dos diretores mais políticos entre os diretores políticos do cinema italiano.

Didático ao explicar o contexto histórico do roteiro, o longa narra o intrincado jogo político feito por Sir William Walker, militar de alta patente da Coroa Britânica vivido por Marlon Brando, na fictícia ilha de Queimada, no Caribe, mantida sob domínio português. Homens como Walker, conhecidos pelo termo inglês filibuster, viajavam o mundo fomentando revoluções em colônias, estejam estas nas Américas, África ou Ásia, cujas metrópoles dificultavam o acesso comercial de outras nações. Antes de ideais libertários, vêm os interesses financeiros: para driblar essa “blindagem”, as potências econômicas de então forçavam rebeliões armadas a fim de garantir a independência dessas colônias, deixando-as livres para negociar com qualquer outro país.

Brando é o ator ideal para viver Walker. Espécie de Mefistófeles da diplomacia, encantando a todos à sua volta com charme e capacidade de oratória, o personagem nunca questiona o próprio trabalho, tampouco o transforma em dilema ético; é apenas um negócio como outro qualquer, onde vence aquele com mais inteligência e ousadia. Não hesita em transformar José Dolores (Evaristo Márquez), um simples carregador de malas que perambula pelo porto da ilha em busca de trocados, em líder de revolução – e posteriormente em general e comandante-em-chefe de Queimada – para assim ganhar a simpatia dos locais. Brando afirmou algumas vezes que esta foi uma de suas melhores atuações na vida. Não chega a tanto: Walker não possui a profundidade sentimental de Terry Malloy (em Sindicato de Ladrões), nem mesmo o caráter trágico de Vito Corleone (O Poderoso Chefão); de qualquer forma, a sequência final, onde um simples olhar revela toda a humanidade oculta pela arrogância do militar, é um grande momento de sua carreira.

O argumento escrito por Franco Solinas, Giorgio Arlorio e pelo próprio Pontecorvo mostra com contundência a ganância das nações ricas do século 19, ávidas por novos mercados para impor seus produtos manufaturados. Interessante notar como as situações desenvolvidas pelo roteiro trabalham o conflito entre os sentimentos dos personagens e os do espectador: enquanto a população de Queimada – formada em sua maioria por negros pobres e escravos, dominados por uma minoria com privilégios – regozija-se pela liberdade conquistada, quem assiste não pode compartilhar essa genuína felicidade; sabemos da farsa, do dominador que apenas mudou de nome e age não mais pela presença física, mas sim pela opressão econômica. Impossível ficar indiferente à manipulação de pessoas que mal têm o que comer, que lutam por moedas atiradas ao chão.

Para conseguir essa cumplicidade do público, Pontecorvo abusa do primeiro plano de seus atores. Isso dá às sequências, que variam do grandioso ao intimista, a força dramática necessária para comprovar o ponto de vista do diretor. Pois é assim que Pontecorvo filma: tentando corroborar seus ideais políticos. Ideais estes não de um qualquer, mas de um ousado pensador esquerdista, crítico voraz do totalitarismo e da perseguição às minorias – não importando se estas são representadas por judeus em campos de concentração, guerrilheiros lutando pela independência da Argélia ou separatistas bascos. Seus filmes, assim, encaixam-se em um gênero à parte: algo como “ficções documentais”, ou “documentários ficcionais”, onde a reconstrução histórica dialoga com e se contrapõe à defesa de posição por parte do diretor.

Seria a sociedade em si o grande mal do mundo, a grande causadora da desigualdade entre os povos? O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau afirmava que o Homem é bom em sua essência, mas a formação de uma sociedade – e sua inevitável estratificação em classes, luta pela propriedade privada e egocentrismo – o corrompeu. Em Queimada!, a concepção rousseauniana de política e natureza humana parece se mostrar correta.

3 comentários em “Queimada! (1969), de Gillo Pontecorvo

  1. João Luis Pinheiro disse:

    Cara, comentei com a Babi ontem e digo a você agora: você escreve muito bem sobre cinema! Um grande talento sem dúvida! Quanto ao filme, eu o vi uma vez, há mais de 20 anos, e me impressionou muito. Sem dúvida, um dos (muitos) pontos altos do grande Marlon Brando. Gostaria de revê-lo. Abraços e parabéns pelo texto!

  2. Aprigio Alves de Oliveira Filho disse:

    Grandioso filme. O cinema italiano é muito rico e Pontecorvo foi um dos mais politizados e contundentes em suas críticas aos regimes opressores, imperialistas ou totalitaristas. Quanto ao uso insistente do primeiro plano ocorreu devido a influência do estilo spaghetti, principalmente de Sergio Leone na época. A escolha do compositor Ennio Morricone já comprova isso. Mas Pontecorvo é um diretor de talento singular e filma à sua maneira ainda que referenciando a estética spaghetti.

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