Carrie, a Estranha (1976), de Brian De Palma

Carrie, a Estranha não se limita a ser um filme de terror. Representa, sim, um dos grandes momentos do gênero, com cenas antológicas de horror físico e psicológico. Mas, antes disso tudo, é um poderoso drama sobre solidão e isolamento, protagonizado por uma menina humilhada por todos de seu meio – de colegas de escola até a própria mãe. E, o pior, vivendo uma das fases mais difíceis da vida de qualquer pessoa: a adolescência, aquele momento no qual descobertas importantes sobre a sexualidade e o próprio corpo tomam conta da cabeça dos jovens.

Carrie White é uma garota tão frágil, melancólica e inocente que se torna devastador assistir seu terrível cotidiano. Sua mãe, fanática religiosa, a aliena de forma perversa, obrigando-a a orar em uma espécie de solitária para expurgar seus “atos pecaminosos”, além de agredi-la física e verbalmente a todo instante. Como se isso tudo não bastasse, em momentos de angústia ou raiva, Carrie se expressa por meio da telecinese, controlando objetos com a força do pensamento. O mundo dessa garota não poderia ser mais distorcido.

Baseado no primeiro livro de Stephen King, lançado em 1974, o filme mantém a principal característica da obra original: uma visceral construção de personagem, não apenas da protagonista, mas também de sua perturbada mãe. Sissi Spacek (então com 26 anos, mas aparentando facilmente quinze) e Piper Laurie dão veracidade à vida torta que ambas levam. A primeira, com seus enormes olhos azuis e longos cabelos louros, é o retrato do deslocamento em um mundo onde as jovens devem ser todas iguais para serem aceitas; já a segunda, vive uma personagem tragicômica, cuja vida se limita a obedecer a dogmas extremos.

Filmada por outro diretor que não Brian De Palma, a força dramática do argumento se perderia. Seu trabalho estético é fundamental para a criação de um elo psicológico inquebrável entre espectador e protagonista. Ao longo dos dois primeiros atos, acompanhamos o inferno pessoal de Carrie de perto: sentimos impotência com as chacotas de suas colegas de classe; gozo, no momento em que essas mesmas garotas são punidas pela professora; dúvida, quando do convite para o baile escolar feito pelo bonitão da sala. A câmera de De Palma é diferenciada por captar essas nuances sentimentais com muito mais intensidade do que outros realizadores: vai da suavidade ao horror na mesma cena – como na sequência inicial, no vestiário do colégio – com igual destreza.

Mas ele é um diretor que joga sujo. Lá no meio do filme, vemos os planos da principal rival de Carrie para humilhá-la ante toda a escola durante o tal baile. Sabemos que algo terrível vai acontecer, mas somos entorpecidos com belos e delicados momentos de Carrie ao lado de seu pretendente durante a festa. Eles dançam, se beijam, a câmera gira ao redor deles, são eleitos os reis e rainhas da noite. E aí, com um plano sequência que passeia por várias mesas, pela pista de dança e termina no teto do salão, somos trazidos de volta à realidade.

O resultado da armação com Carrie, e principalmente sua reação ao ocorrido, é puro delírio cinematográfico, orgasmo coletivo em todos nós, espectadores, que tomamos a vingança da protagonista como nossa resposta a um mundo intimidador. De Palma entrega todos os elementos possíveis para criar uma sequência inesquecível: divide a tela em duas, distorce as cores das imagens, suprime a trilha sonora musicada. E ainda, na última cena do filme, nos oferece um pequeno surto, típica brincadeira de quem ama o que está fazendo.

Carrie, a Estranha funciona tão bem no plano objetivo (conto sobrenatural a respeito de uma garota com poderes sobre-humanos), como no subjetivo (metáfora do poder da sexualidade feminina ou, então, dos efeitos da opressão sexual sobre a juventude). No entanto, o maior feito deste clássico é contar uma história poderosa com imagens poderosas; ou seja, ser cinema em sua totalidade.

carrie

4 comentários em “Carrie, a Estranha (1976), de Brian De Palma

  1. João Luis Pinheiro disse:

    Meu caro Thiago, mais um belo post! Este é um filme emblemático pra minha formação cinematográfica. Foi o segundo que vi do grande De Palma (o primeiro foi O Fantasma do Paraíso). A partir daí, descobri que seu vigoroso cinema ia muito mais além de um mero imitador de Hitchcock (como se dizia na época). É um grande clássico, mas meu preferido ainda é Double de Corpo. Abraços!

    • Thiago Borges disse:

      Para mim, De Palma também é muito importante. Mas, por mais que goste da fase “hitchcockiana” dele, acho que seu melhor filme é O Pagamento Final, seguido por Trágica Obsessão e Um Tiro na Noite. Abraços e obrigado pelo comentário!

  2. Rafael Amaral disse:

    Olá amigo cinéfilo. Como você já deve saber, a essa altura, acabo de estrear um site. Gostaria de lhe pedir que coloque, se possível, o link dele aqui entre os seus favoritos. Agradeço muito e aguardo suas visitas por lá. Aproveito para dizer que adoro “Carrie”. Um belo filme! http://cinemavelho.com

  3. lucicleia peixoto disse:

    gostaria que sempre que vc tivesse um tempo comentasse sobre filmes antigos e claro com fotos gosto muito de CARRIE e também do que vc comentou é oque muitos pensam sobre o filme , parabéns

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