Na aritmética básica do cinema, imagem + som = significado. Simples, mas é aí que reside o maior desafio dessa arte: construir sentido, dispor os fotogramas em uma sucessão lógica ao mesmo tempo em que se revela uma visão de mundo.
Esse conceito perpassa toda a trama de Um Tiro na Noite. Não de forma óbvia, claro, pois o filme brinca com a ideia do “fazer cinema”. De Palma obriga os personagens a atuarem como diretores: devem atribuir ideias, colocar fatos em ordem, explicar aquilo que os cerca. Cria, assim, filmes dentro de seu próprio filme, exercícios de suspense dentro de seu próprio exercício de suspense.
Essa brincadeira também se estende à profissão do protagonista vivido por John Travolta. Jack é técnico de som de uma produtora de filmes z. O típico homem hitchcockiano, cuja vida pacata implode por estar no lugar errado, na hora errada. No caso, ao presenciar, e gravar em áudio, o acidente de carro que mata um candidato à presidência dos Estados Unidos. A partir daí, inicia-se um complexa teoria da conspiração envolvendo política e morte.
Após um engajado início de carreira, mergulhado na contracultura do fim dos 1960, De Palma volta a emitir opiniões políticas agudas somente em Um Tiro na Noite. Sua visão de desprezo aos poderosos é clara. Ele sabe que a máquina pública tem por objetivo zelar pelos interesses da classe dominante. E também destruir pessoas, fazê-las cair em esquecimento. Enquanto ocorrem paradas patrióticas pintadas com as cores da bandeira, inocentes são esmagados sem dó. É a América em sua essência.
E a imagem é outro fator essencial na sociedade ianque. O imaginário coletivo gira em torno dela, principalmente por meio da imagem em movimento – o cinema, a televisão. Afinal, segundo o ditado, vale mais do que mil palavras.
Como Jack descobre a verdade sobre o acidente, então? Sincronizando o áudio capturado com fotografias tiradas por um charlatão durante o fato. Ou seja, montando um filme. Sem esse filme, não existe crime, não existe mistério. A arte, portanto, salva o dia – mas também acaba com a vida do pobre rapaz.
Essa dualidade da imagem (redenção/danação) é tema recorrente na filmografia de De Palma. E seu virtuosismo com a câmera serve para nos mostrar o quão manipuláveis somos em relação ao assunto. Com ritmo perfeito para a construção do suspense, sabendo o momento de diminuir e aumentar a intensidade da ação, mantém controle total sobre as emoções do público.
Jack inicia a trama procurando um grito feminino para dublar certa cena. Ao fim da projeção, encontra um exemplar perfeito, mas ao custo de sua sanidade. A mesma ironia brutal encontrada em vários Hitchcock. Assim como Um Corpo Que Cai, Um Tiro na Noite mostra que não existe saída fácil para esse mundo cão.
Os comentários ao redor desse filme são ótimos, preciso assistir logo.
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Assista, Cleber. É de longe um dos melhores do De Palma.