A infância como ela é

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Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami

Um dos momentos mais ricos da vida é a infância. No entanto, ser criança só parece fácil. Claro que existe a facilidade de não possuir grandes responsabilidades, mas o choque entre a inocência e a aspereza do mundo sempre está lá para confundir a cabeça. Vendo O Garoto da Bicicleta, dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, me recordei de vários momentos especiais nos quais o cinema conseguiu captar, de forma séria, o espírito errante infantil. Criança não é burra ou alienada, como bem provam Truffaut e Kiarostami, por exemplo.

Em 1933, Jean Vigo usou os alunos bagunceiros de uma escola para zombar das regras impostas por governos e instituições de poder em Zero de Conduta. A rebeldia das crianças também podia ser instrumento revolucionário, por que não? Alguns anos depois, O Mágico de Oz não precisou ser político para adaptar às telas a relação infantil entre o real e o imaginário presente no clássico texto de L. Frank Baum.

Mas só no fim da década de 1950 surge um filme definitivo a respeito da complexidade da idade. François Truffaut colocou muito de sua própria vida em Os Incompreendidos – e isso oferece muita veracidade à obra. Antoine Doinel, protagonista e alter-ego do diretor, embora não verbalize, sofre quieto com a deterioração da relação entre a mãe e o pai adotivo. Finge ir à escola, rouba coisas da vizinhança. Porém, esse modo, digamos, irresponsável de se viver não surge apenas por conta da família. Existe ali a vontade de conhecer o mundo, de não se limitar às amarras da idade. E uma vontade ainda maior de ser gente grande e resolver todos os problemas num estalar de dedos. Fingir ser mais durão do que se é, mesmo tendo um coração mole de menino: a receita de Doinel para aliviar a dureza da vida.

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Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut

Uma certa delinquência também está presente em O Garoto da Bicicleta. O jovem Cyril seria quase um Doinel dos tempos modernos, abandonado à sorte em um orfanato pelo pai chef de cozinha que não quer responsabilidades. Em certo momento, uma dona de salão de beleza começa a cuidar do garoto nos finais de semana. Interessante notar como, mesmo com o carinho da tutora, a raiva de Cyril ainda continua a movê-lo. Julgar o personagem, a partir daí, seria a coisa mais fácil do mundo. No entanto, cabe um exercício mental: o quê esperar de um garoto que jamais teve relação afetuosa com adultos? Os irmãos Dardenne são sábios o bastante para evitar qualquer traço melodramático na história, deixando-a crua, em alguns momentos até mesmo assustadora. Tudo para o espectador tirar suas próprias conclusões.

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O Garoto da Bicicleta (2011), de Jean-Pierre e Luc Dardenne

A sensibilidade de Abbas Kiarostami para tratar do tema o aproxima de Truffaut, embora trabalhe de uma forma menos direta, mais simbólica, que o francês. Seu primeiro filme, The Traveler (acho que não existe tradução oficial em português, provavelmente seria “O Viajante”), de 1974, narra a odisseia de Qassem para conseguir dinheiro e viajar escondido dos pais à capital. O objetivo: assistir a uma partida de futebol de seu time favorito. No fim dos 1980, o cineasta faz a obra-prima Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. Aqui, Ahmad chega em casa após a aula e percebe que pegou o caderno do coleguinha por engano. Ele precisa devolver o objeto, pois sabe que se alguém da classe não fizer a lição de casa sofrerá castigo do professor. Mas existem dois problemas ainda maiores: sua mãe não quer vê-lo sozinho pelas ruas e ele não tem ideia de onde o amigo mora.

A jornada pela qual ambos os personagens devem passar encontra como principal barreira a intransigência do mundo adulto – ainda mais profunda em um país com doutrinas rígidas como o Irã. As convenções sociais, sob a ótica infantil, se tornam ridículas. Falta aos crescidos aquilo que sobra aos pequenos: entendimento, bondade, obstinação. Ao final, tendo conseguido ou não alcançar seus objetivos, os meninos (e isso vale também para Doinel e Cyril) ao menos sabem um pouquinho mais sobre como funciona esse negócio chamado vida.

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The Traveler (1974), de Abbas Kiarostami

 

3 comentários em “A infância como ela é

  1. Além da infância ser uma fase de nossa existência para lá de complicada, ela raramente é captada com brilhantismo no cinema. Eu detesto, por exemplo, aquele japonês chamado “O Que Eu Mais Desejo”, em que a câmera sequer equipara os seus personagens centrais. Diante de um viés, hum, rebelde, “Os Incompreendidos” é mesmo um dos filmes definitivos, ainda que eu aprecie muito mais o que Vittorio de Sica fez com praticamente o mesmo enredo em “Vítimas da Tormenta”, de 1946.

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