Como principal produto da televisão brasileira, a novela deveria ser mais bem cuidada por quem as cria – emissoras, escritores, diretores. Não digo isso por apreciar e defender a dramaturgia nacional para TV. A reciclagem de temas, recontando o já contado inúmeras vezes, beira o inacreditável. Do texto, não se tira quase nada: desenvolve mal temas amplos e relevantes para a sociedade; foca em tramas que não fazem a narrativa andar; abusa do uso do clichê e da linguagem formal; retrata um país fictício, sem pobres, feios e derrotados. Se ao menos o desastre dos roteiros fosse compensado com uma forma inteligente de se filmar, estariam todos desculpados. Mas não temos nem isso…
A novela é uma verdadeira instituição cultural brasileira – e não vejo nada de ruim nesse fato. Só não entendo como, atualmente, um espetáculo tão ruim comove tanta gente. A grande máquina do marketing alimentada pelas emissoras explica o caso. A Globo – convenhamos, a única rede a tentar fazer televisão de forma séria – bombardeia seus espectadores com programas, reportagens e afins que tratam justamente de novelas. Só que o público também tem sua parcela de culpa. Ao longo dos anos, a audiência cresceu enquanto a qualidade dos trabalhos caiu. Isso comprova aquilo que já se sabe: a ausência de senso crítico do brasileiro em geral, nossa falta de vontade de ganhar cultura e tal. No entanto, a questão não é essa.
No último sábado, por acidente, assisti a uns minutos de Água Viva, novela da Globo de 1980. Passava naquele canal de reprises de programas da emissora, o Viva. Parei na frente da TV só pra rir um pouco de mais uma novela boba sendo retransmitida pela milionésima vez – sim, não era uma tarde produtiva. Pra minha sorte, queimei a língua: vi sequências cujo nível de direção supera qualquer coisa vista na televisão brasileira moderna.
Os personagens de Reginaldo Faria e Ângela Leal descansavam em um parque, acompanhados por várias crianças correndo e brincando – não sei qual a relação entre os adultos e os pequenos. De repente, um zoom rápido se aproxima do rosto de Ângela, que grita de forma angustiada o nome de um dos garotos. Só após esse momento, vê-se o ocorrido: ele foi atropelado. O desespero da situação se traduz na câmera inquieta, que não para de se movimentar enquanto registra os personagens correndo na direção do acidente, tentando reanimar a criança. Rostos, braços que carregam um corpo desacordado, pessoas histéricas: nada fica muito tempo no quadro, em uma decupagem que orgulharia Samuel Fuller.
Reginaldo Faria e o motorista do carro rumam, então, para o hospital. O trânsito está infernal. O primeiro decide terminar o trajeto a pé, com o menino nos braços, pra ganhar tempo. Ao invés de optar pelo mais cômodo – cortar para o personagem chegando no pronto-socorro assim que ele desce do carro -, a direção alonga a cena para deixar o público ainda mais aflito, filmando todo o percurso de forma a captar a dificuldade da situação. Já dentro da sala de cirurgia, outra cena esteticamente bela: após mostrar o rosto ensanguentado da criança, a câmera passeia pelo local, no qual os médicos se preparam para a operação, até chegar à porta, por onde se vê Faria e mais alguém (não lembro se era o motorista) espiando através do vidro.
É pedir muito que uma novela atual seja minimamente criativa, no quesito imagético, tal como uma de trinta anos atrás? Não sei se o nível técnico de Água Viva era realmente alto ou se aquelas sequências foram exceções. Isso não tira o mérito de essas cenas, mesmo isoladas de seu contexto, exalarem paixão pelo ofício de filmar.
Nem imagino a dificuldade de se gravar um produto de massa como esse, cujo sucesso (audiência) deve ser medido dia após dia. Acontece que a Globo possui os melhores técnicos, equipamentos, orçamentos. Não é possível que um diretor de uma emissora desse porte fique satisfeito com o trabalho burocrático veiculado hoje, com valor artístico nulo.
Atualmente, constrói-se todo diálogo da mesmíssima maneira: a montagem simplesmente mostra quem fala, sem criar uma continuidade no espaço cênico. Parece que se esquecem do campo/contracampo do cinema clássico de Hollywood, arroz-e-feijão de qualquer obra audiovisual. Em cenas mais movimentadas (assassinatos, acidentes etc.), tascam câmera lenta, como se o público precisasse enxergar toda uma ação para entendê-la. E por aí vai.
Alguém ganha em produzir produtos mais elaborados? É provável que não, pois o trabalho seria ainda maior. Então, as coisas ficam como estão. Evitar a fadiga, como dizia o outro. Não peço um Breaking Bad, um True Detective nacional – até porquê o próprio formato novelesco, com duração de meses a fio, superando os duzentos capítulos, dilui qualquer boa trama. Porém, queria ver mais coisas como Água Viva. Perdem os espectadores em geral, que poderiam educar o olhar, aprender coisas com as quais jamais teriam contato a não ser pela TV. Novela pode ser escapismo, mas nem por isso deve ter qualidade duvidosa.