Vamos encarar os fatos: Martin Scorsese, aos 71 anos de idade, é um dinossauro do cinema. Seu primeiro longa-metragem, Quem Bate à Minha Porta?, data de 1967, quase quarenta e sete anos atrás. Reconforta perceber, então, que seu espírito se mantém jovem a cada novo filme criado – mais jovem que muito cineasta menino por aí. É possível se encantar com o frescor de suas películas mais recentes quase da mesma forma com que o mundo recebia os trabalhos arrojados de um garoto crescido no Little Italy, em Nova York, enquanto ainda lutava para ter um lugar de destaque em Hollywood durante os anos 1970.
Scorsese, pra mim, é paixão adolescente. Descobri vários de seus clássicos na mesma época em que comecei a encarar cinema como coisa séria. Ver uma obra dele tem significado especial. Por isso, após escrever sobre sua mais nova pérola, O Lobo de Wall Street, pensei em homenageá-lo com uma lista de seus dez melhores filmes. As posições não importam muito – como bem diz Sérgio Alpendre, a data de validade de uma lista é o dia em que foi publicada. Vale, sim, notar que longas das últimas cinco décadas estão aí. É a prova de que, no cinema americano contemporâneo, poucos brilham como Martin Scorsese.
10. Alice Não Mora Mais Aqui (1974)
No começo da carreira, Scorsese se inspirou no intimismo e experimentalismo do cinema europeu (Quem Bate à Minha Porta?), fez filme B à la Joseph H. Lewis (Sexy e Marginal) e passeou pelo mundo dos gângsteres (Caminhos Perigosos). Alice Não Mora Mais Aqui é uma incursão diferente, cuja abordagem o diretor não revisitou ao longo dos anos. Umas pitadas de comédia e romance, com um punhado do jeitão John Cassavetes de filmar a rotina doméstica, criam um doce retrato sobre a independência feminina durante os anos 1970. Alice (uma das grandes atuações de Ellen Burstyn) não deseja muita coisa da vida, não: apenas educar seu filho e trabalhar como cantora.
Momento inesquecível: Os créditos e a primeira cena, um flashback que mostra Alice criança, são claras homenagens a clássicos dos anos 1930 como O Mágico de Oz e …E o Vento Levou. De repente, o áudio trava, a imagem desaparece e somos jogados, ao som de Mott the Hoople, em um panorâmica que desfila pela rua em que a protagonista já crescida mora. A câmera invade sua casa para mostrar que os sonhos da infância ficaram há muito no passado.
9. Ilha do Medo (2010)
Muita gente, muita mesmo, não entendeu Ilha do Medo. Não se trata apenas de um thriller com final previsível, mas sim de um filme sobre a arte de fazer filmes. O cinema encanta por levar um simulacro da realidade à plateia, fazendo-a se emocionar com algo que todos sabem ser falso. Nesse acordo tácito, o cineasta tem o papel primordial de organizar e validar essa farsa. E a farsa em Ilha do Medo está presente praticamente desde o primeiro frame da trama, na qual um detetive vivido por Leonardo DiCaprio investiga um desaparecimento dentro de uma prisão-hospício. Policiais que não sabem sacar as armas do coldre, perguntas hesitantes, personagens que demonstram desconforto em estar em cena e uma montagem dissonante, sem corresponder às ações dos atores: está tudo lá, basta enxergar além do óbvio.
Momento inesquecível: as diversas sequências oníricas envolvendo Teddy Daniels (DiCaprio), um homem cuja mente ferida interfere na percepção da realidade a seu redor.
8. O Rei da Comédia (1983)
Surpreende O Rei da Comédia ser um título um tanto quanto obscuro na filmografia do ítalo-americano. Uma das mais devastadoras sátiras já feitas no cinema sobre a busca incessante pela fama, conta com um Robert De Niro inspirado e o gênio Jerry Lewis em papel sisudo. Rupert Pupkin (De Niro), um homenzinho patético e psicótico, aspirante a comediante e sem qualquer habilidade para o contato social com outras pessoas, começa a perseguir seu grande ídolo, Jerry Langford (Lewis), em busca de uma chance no show business. As observações a respeito da indústria das celebridades transformam o longa em um retrato fiel da sociedade ególatra dos tempos atuais.
Momento inesquecível: Pupkin, em seu quarto, gravando fitas de audição para enviar aos produtores de Langford, enquanto sua mãe, em outro cômodo da casa, grita para que pare de fazer barulho. A sequência termina com o protagonista apresentando seu número a uma plateia de papelão.
7. O Lobo de Wall Street (2013)
A biografia do magnata das bolsas de valores americanas Jordan Belfort é recheada de falcatruas, dólares, sexo e drogas – não necessariamente nessa ordem. Nas mãos de Scorsese, a vida desse criminoso do colarinho branco virou uma tese da frivolidade, da falta de humanidade causada pelo dinheiro fácil. O Lobo de Wall Street tem um humor peculiar, exagerado e escrachado, justamente para fazer troça de homens que se consideram superiores por possuírem contas bancárias gordas. Na verdade, não passam de crianças encantadas com um mundo descolado da realidade – escrevi mais sobre o filme aqui.
Momento inesquecível: Belfort (DiCaprio), totalmente dopado de pílulas, rastejando pelo chão, e rolando uma escada, até chegar ao carro, naquela que deve ser a sequência mais hilária já filmada pelo cineasta. Não apenas o humor físico torna a cena brilhante, mas também a narração em off do protagonista, rindo da própria situação.
6. Cassino (1995)
Cassino é muito mais do que uma sequência espiritual de Os Bons Companheiros. Embora semelhantes na parte estética – e contando com De Niro e Joe Pesci como astros -, o longa de 1995 trata de forma mais crua o mundo dos criminosos. Nele, acompanha-se o domínio da Máfia sobre o jogo em Las Vegas nos anos 1970. Apesar de os elegantes mafiosos retratados serem aparentemente mais inteligentes e refinados, mostram-se tão violentos, estúpidos e inconsequentes quanto os gângsteres de rua de Os Bons Companheiros.
Momento inesquecível: a primeira cena, acompanhada dos créditos iniciais criados por Saul Bass, fisga o espectador, mas o brutal assassinato de um dos personagens chave da história resume o deprimente panorama do crime organizado norte-americano no século 20 que é Cassino.
5. A Última Tentação de Cristo (1988)
Ao contrário do pregado por religiosos que mal conseguem analisar uma obra de arte, A Última Tentação de Cristo não tem nada de transgressor da moral cristã. Pelo contrário: a adaptação do romance de Nikos Kazantzakis celebra a divindade e, principalmente, a humanidade de Jesus. Willem Dafoe oferece peso dramático inigualável aos temores e fraquezas do homem, filho do próprio Deus, escolhido como salvador da humanidade. O enredo segue diversos acontecimentos descritos na Bíblia, porém sob uma perspectiva psicológica e introspectiva da persona de Jesus. Com isso, fica fácil para o público se envolver na luta pessoal de Cristo para entender sua missão na Terra. Filme corajoso como poucos.
Momento inesquecível: Jesus, já pregado na cruz, acorda de seu delírio e se despe de qualquer egoísmo para oferecer sua vida em troca da salvação do mundo. A beleza sublime da cruz filmada contra o sol é coisa de louco.
4. Os Bons Companheiros (1990)
Enquanto O Poderoso Chefão retrata a Máfia de forma hiperbólica, com a grandiosidade de uma ópera urbana, Os Bons Companheiros afirma que não existe nada de nobre quando criminosos de esquina se reúnem. Martin respondeu ao clássico de Coppola com outro clássico, atingindo o ápice de seu virtuosismo como cineasta nesta história baseada na vida do mafioso Henry Hill. O melhor elenco já dirigido por ele – Ray Liotta, De Niro, Pesci, Paul Sorvino, Lorraine Bracco – encontra no roteiro do escritor Nicholas Pileggi um material cheio de cinismo a respeito da vida fora da lei. Quando dinheiro está em jogo, não existe código de honra nem moral que permaneça em pé.
Momento inesquecível: poderia ser o plano-sequência que acompanha a entrada de Hill (Liotta) e esposa (Bracco) em um restaurante, apresentando o jovem ao mundo dos excessos. Porém, melhor que isso só ver o protagonista passar um dia inteiro chapado de cocaína, achando que está sendo perseguido por um helicóptero do FBI.
3. Depois de Horas (1985)
O filme mais subestimado do cineasta. Paul Hackett (Griffin Dunne), um yuppie careta, sai à noite com uma garota (Rosanna Arquette), perde o dinheiro da carteira e simplesmente não consegue voltar para casa. Nova York se torna o inferno pessoal de Paul, no qual ele precisa encarar anarcopunks, suicidas, ladrões e toda a fauna humana pertencente às madrugadas de uma metrópole. Este conto de humor negro, encharcado de surrealismo, fala sobre a descoberta do desconhecido, mas também critica a apatia da sociedade moderna causada pela aparência de uma vida confortável.
Momento inesquecível: memória fraca, faz tempo que não revejo Depois de Horas. No entanto, o final tem ironia ímpar: Paul finalmente se livra das ruas nova-iorquinas cheias de perigo para um homem de bem e encontra, no emprego que tanto odeia, o refúgio para sua acomodação.
2. Touro Indomável (1980)
A abertura em câmera lenta com De Niro se aquecendo antes de uma luta, ao som da ópera Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, dá o tom lírico para a obra mais artística de Scorsese. A história real do boxeador Jake LaMotta, que sobe ao ringue não somente para enfrentar adversários, mas exorcizar os fantasmas de sua vida pessoal, oferece ao diretor a matéria-prima perfeita para falar sobre a redenção de um homem problemático – e também para comentar a própria redenção, pois na época estava entregue ao vício em drogas. As melhores atuações da carreira de De Niro e Pesci, a representação mais brutal de uma luta de boxe no cinema, o final que evoca o discurso de Marlon Branco em Sindicato de Ladrões – enfim, um filme impecável.
Momento inesquecível: LaMotta apanha feito o diabo de Sugar Ray Robinson na revanche entre os lutadores, porém se recusa a cair nocauteado. No fim da luta, mesmo com a derrota, diz orgulhoso: “você nunca me derrubou, Ray”. Ele pode ser um perdedor na vida, nunca no ringue.
1. Taxi Driver (1976)
Taxi Driver fica no topo da lista por representar um microcosmo da carreira do diretor, seja por narrar a violenta jornada de um anti-herói ou pela forma inquieta e virtuosa com que as imagens são mostradas. Toda a linguagem usada por Scorsese ao longo dos anos está presente em sua totalidade aqui: movimentos rápidos de câmera, planos detalhes de objetos, tomadas que transmitem os sentimentos dos personagens sem que esses sejam mostrados, fotografia com cores saturadas. A mente doentia de Travis Bickle (De Niro), um solitário motorista de táxi que nutre desprezo e ódio pela sociedade ao seu redor, traduz-se nas ruas decadentes, cheias de prostituas, cafetões, drogados e mendigos, de Nova York.
Momento inesquecível: a matança provocada por Bickle, filmada de um jeito seco, sem trilha sonora. A violência como ela realmente é: cruel, rápida, sem sentido.
Menções honrosas
A Cor do Dinheiro (1986)
Paul Newman e Tom Cruise são jogadores de bilhar que fazem de suas frustrações pessoais parte do jogo. Outro longa injustamente esquecido.
O Aviador (2004)
Biografia do magnata do cinema e da aviação Howard Hughes. Tocante retrato de um jovem que vê sua vida de luxo ser sabotada pelo transtorno obssessivo-compulsivo.
Você se superou Thiago Borges! Que lista! Nem lembrava mais de “Alice…”. É um ótimo filme. De todos, só não vi O Lobo de Wall Street e, pasme, Depois de Horas! É mole!? É claro que existem divergências entre nós. A principal é a inversão dos 2 primeiros. As outras… conversamos pessoalmente.
Obrigado, João! Depois de Horas é fantástico, veja sim. Quanto aos dois primeiros, o empate técnico seria o mais justo. hehehe Abs!