Martin Scorsese está em plena forma. Não faz um filme que pode ser considerado ruim desde Gangues de Nova York, em 2002, e, de lá pra cá, trabalhou com desenvoltura no cinema de gênero (policial, documentário, suspense psicológico, aventura infantil). Dá para contar nos dedos um cineasta que, a esta altura da vida, se dá ao luxo de criar uma obra tão envolta em polêmicas, banida e censurada em um punhado de lugares, como O Lobo de Wall Street. Filmando como menino, fez um dos longas mais mordazes da carreira do alto de seus 71 anos de idade.
O lobo do título é Jordan Belfort, jovem corretor de ações que se torna multimilionário por meio de trambiques na bolsa de valores. Algum tempo depois, afunda-se nas drogas, perde a família, vai preso etc. A história de sempre dos contos morais que mostram como o dinheiro corrompe as pessoas – com a pequena diferença de que Belfort existe sim no mundo real.
Surpreendente não é saber como a trajetória do personagem termina, pois um tanto óbvia, mas ver como é contada. Scorsese já abordou a ascensão e queda de criminosos algumas vezes – Os Bons Companheiros, Cassino. Aqui, mais do que nunca, vemos um narrador se despir de quaisquer pudores para mostrar a corrosão moral causada pelo dinheiro fácil. O roteiro de Terence Winter pode até não ser totalmente baseado em fatos verídicos, porém traduz bem o espírito yuppie americano surgido nos anos 1980 e multiplicado ao redor do mundo nas décadas seguintes.
A vida retratada em O Lobo de Wall Street acontece em um mundo paralelo, sem contato algum com a realidade: disputas de “anões ao alvo” em pleno expediente de trabalho, chimpanzés andando por entre mesas de escritório, strippers peladas enquanto ações são vendidas ao telefone. Isso sem falar no sexo e drogas a rodo, com cocaína e Qualuudes consumidos como oxigênio.
Scorsese foi massacrado por certos críticos, acusado de celebrar a misoginia de Belfort. Ora, para ficar em um exemplo absurdo, um filme sobre o nazismo automaticamente atesta como corretas as atrocidades cometidas por Hitler? Em momento algum o diretor, tampouco o roteiro, fazem juízo de valor dos atos dos personagens, que vivem em meio à uma versão reduzida de Sodoma e Gomorra. Deixam isso para o espectador – e se alguém sair do cinema inspirado pelo protagonista, o problema claramente não está no filme.
Penso que os fartos momentos de humor enganam a plateia. Além de ousado, o longa deve ser o mais engraçado do diretor. A risada, no entanto, não vem da aprovação do mostrado em tela, vem da ridicularização do ridículo: um rapaz se masturbando em meio a uma festa; outro que ao fazer sexo com a modelo/acompanhante goza em meros quinze segundos; a discussão para saber se é possível jogar boliche com anões; um homem chapado de pílulas rastejando pelo chão para chegar em casa. Belfort e asseclas vivem unicamente para a próxima cheirada, a próxima trepada, o próximo milhão de dólares. Tudo ao redor deles, principalmente mulheres, deve lhes oferecer prazer, sem limites. Por isso, o humor de Lobo não é conciliador, mas corrosivo. Expõe a frivolidade de um modo de vida tão volátil quanto o valor de uma ação no pregão.
Disse que Scorsese filma como um menino, pois seu leque de qualidades técnicas permanece o mesmo de sempre. Seja para criar sequências descontroladas, com movimentos rápidos ou uso de câmera lentíssima, ou algo mais intimista, baseado no mero campo/contracampo, ele se mantém mestre no ofício. A montagem da companheira de trabalho de décadas Thelma Schoonmaker tem alguns probleminhas (com a falta de continuidade das ações dos atores em determinadas cenas), mas oferece o ritmo inquieto necessário à história.
Ao fazer um filme sem concessões, o cineasta acerta em cheio. Denuncia uma visão doente de mundo (machista, hedonista, exclusivista) fazendo troça das pessoas envolvidas – e isso se dá, também, graças à força do elenco, encabeçado por um Leonardo DiCaprio cada vez mais brilhante, pontuado por participações hilárias de Matthew McConaughey e do diretor Rob Reiner e com jovens talentosos como Jonah Hill. Belfort, ao final de sua trajetória, torna-se palestrante motivacional. Aí está a ironia maior disso tudo: o quê esse homem tem para ensinar a alguém?
Quanto ao barulho da crítica cinematográfica contra o filme, um fato: já passou o tempo no qual Scorsese tinha que explicar seu trabalho.
O Lobo de Wall Street estreia oficialmente no Brasil nesta sexta-feira, 24 de janeiro.
Sem duvida um filme brilhante. Talvez Jordan seja um dos personagens mais inspiradores do cinema atual por um pequeno detalhe. Um dos maiores destaques é de como ele conseguia vender lixo como se fosse ouro. E sempre perceba como ele incentiva a todos ao seu redor de sua capacidades. E mais ainda, ele criou lobos, com muita fome …
Sim Jordan, vou vender sua caneta.
João, eu jamais diria inspirador, pois o Belfort é um psicopata, mas que ele tem um poder de persuasão gigantesco, isso tem…
Que bela crítica! Traduziu em palavras tudo o que o filme representa. Concordo com você, Scorsese dificilmente errou em sua carreira. Leonardo Di Caprio melhora cada vez mais e a mensagem de que “o dinheiro corrompe e destroi sua vida” apesar de contada múltiplas vezes, ganhou uma nova conotação com essa trajetória do Belfort. E o pior de tudo é que é uma história baseada em um homem real…
Isabela, é inacreditável saber que existem sim, e aos montes, homens deslocados da realidade como os retratados em “Lobo”.
Uauu! Fazia tempo que não sentia tanta vontade de ver um filme como depois de ler seu texto Thiago… méritos ao seu belo texto! Scorsese é magnífico e ótimo vê-lo em plena forma assim. Ahh, não esqueci da nossa cerveja! Vamos marcá-la em breve. Abraços!
Veja sim, João! É um filmaço! Obrigado pelos elogios!