Revirando alguns livros sobre cinema, encontro Cinefilia (Cosac Naify, São Paulo, 2010), do historiador e crítico francês Antoine de Baecque, e automaticamente me lembro do encontro com o autor em São Paulo, lá em 2011, e do artigo escrito para o Cinefilia. A pauta é antiga, mas o tema abordado, atemporal. Por isso, reproduzo o texto, a seguir.
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A cinefilia vive, cada vez mais. Se essa afirmação pode ser questionada — ainda mais em um mundo onde os grandes blockbusters se firmaram como principais vedetes do cinema —, a opinião do historiador e crítico francês Antoine de Baecque, ao menos, dá um alento aos amantes do cinema como arte, como meio de uma mensagem (seja qual ela for), como sentimento.
Antoine visitou o Brasil e passou por Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, em eventos que fizeram parte do lançamento oficial de seu livro no País. A obra narra o crescimento do culto ao cinema na França pós-Segunda Guerra Mundial, principalmente graças aos textos teóricos de André Bazin, culminando com a geração dos “jovens turcos”, os talentosos redatores da revista Cahiers du Cinéma que posteriormente se tornaram não apenas diretores, mas também membros chaves da Nouvelle Vague francesa (Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Jacques Rivette).
Na capital paulista, o encontro ocorreu no Reserva Cultural, renomado cinema da região central da cidade. O curta Uma História d’Água (Une histoire d’eau, 1961), fruto de uma parceria entre Godard e Truffaut no início de suas carreiras, abriu o evento. De certa forma, seus 18 minutos de duração resumem a visão dos dois diretores sobre o cinema — visão esta compartilhada por seus parceiros de revista: um instrumento que dissemina e defende uma visão de mundo; uma ferramenta ousada para contar histórias pessoais, sem medo de dialogar com outras formas de arte, como a literatura e poesia, e fatos do cotidiano.
Na sequência, o crítico Ismail Xavier conduziu um curtíssimo bate-papo com o autor, cerca de 40 minutos. Pode parecer pouco — e, de fato, foi —, mas bastou para Antoine expressar, com palavras cuidadosas, seu carinho para com o tema. “A cinefilia, hoje, tem grande suporte no DVD e na internet”, afirmou , espantando aqueles que não acreditam ser possível, em uma sociedade digital, um culto sério a qualquer forma de arte. “Na internet, inclusive, é notável a quantidade de textos sobre cinema em blogs, sites”. Obviamente, no entanto, esse aspecto “democrático” da informação e do conhecimento cobra seu preço. “Deve se ter critério para escolher o que assistir, o que ler. Temos muitas coisas disponíveis, mas nem tudo é interessante ou bom. O segredo é fazer uma escolha e ir até as últimas consequências com ela”.
E por que esse novo “olhar” sobre cinema — maduro, analítico — surgiu exatamente na França? Durante a Segunda Guerra, o país, sob ocupação nazista, não tinha acesso à produção cinematográfica americana da época. Ao seu término, uma enxurrada de filmes — de Welles a Hitchcock, Hawks a Ford — chegou aos recém inaugurados cineclubes, dando a chance aos franceses de analisarem diversas obras simultâneas, criando o conceito de que um cineasta, tanto quanto um pintor ou escritor, também deve ser considerado um autor. Antoine, interpelado sobre a presença do cinema nas escolas, foi ao ponto, definindo o que a geração de Truffaut já havia aprendido. “O cinema não precisa ser ensinado em escolas, pois já é uma escola em si”. E a crítica atual deve fazer a mesma coisa que a geração dos “jovens turcos” fez: aprender a olhar, para depois analisar o que foi visto. Somente assim, o cinema se torna arte e, consequentemente, se torna debate.
A última pergunta destinada a Antoine foi feita por um senhor de aproximadamente 70 anos, talvez mais. Pediu a opinião do autor sobre o último filme de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, e citou ainda a homenagem do diretor à crítica francesa em Dirigindo no Escuro. A pergunta em si não teve tanta relevância, foi mais uma entre tantas. O modo como falava, no entanto, impressionou: de forma entusiasmada, parecia uma criança que descobre um novo brinquedo, animado talvez pela presença de outros admiradores daquilo que tanto ama. Esse é o espírito do cinema, algo que transcende a ideia de passatempo, de baldes de pipoca e filas intermináveis em multiplexes.