Como dizem por aí, existem filmes e filmes. Alguns permanecem com o espectador por muito tempo após os créditos finais: falam diretamente aos sentidos e ao intelecto do público; analisam o mundo a partir de pontos de vista privilegiados; convidam aqueles que os assistem a pensar e a construir sentidos às imagens. Podemos chamá-los de “filmes-diálogo”.
Em tese, qualquer filme dialoga com seu público. Mas alguns foram feitos para oferecer perguntas, não respostas: estas ficam a cargo do espectador; é ele quem deve buscá-las. Verdades e Mentiras, de Orson Welles, talvez seja a síntese desse conceito. Ao abordar a linha tênue entre, como o próprio título nacional insinua, a verdade e a mentira, utilizando-se das histórias reais de um falsificador de pinturas e de um escritor que inventa uma biografia, Welles quer saber: o que é arte, afinal? Se ela é apenas uma representação do mundo – ou seja, uma mentira -, por quê devemos nos importar se alguém copia algo ou simplesmente trapaceia? O diretor de cinema também não é um mero falsificador do real, um contrabandista de emoções? Cada espectador deve ter sua(s) resposta(s) – e, se possível, debatê-la(s) com outros que também a(s) tenha(m).
Questionar o cinema também é a premissa básica de Brian De Palma. Dublê de Corpo, por exemplo, apenas aparenta ser simples: apesar de emular, como em tantos outros filmes, clássicos de Hitchcock como Um Corpo Que Cai e Janela Indiscreta, vai além ao escancarar o poder de sedução da Sétima Arte. Após duas horas tensas, carregadas de morte e mistério, vemos o protagonista – um ator de produções de terror de baixo orçamento – em meio a um set de filmagem. Ali, na sequência final, De Palma mostra como somos suscetíveis ao que nos é mostrado na tela grande, desnudando as artimanhas usadas por quem faz filmes para ganhar a atenção do público. Com Dublê de Corpo, tem-se uma experiência interessante e recorrente: quanto mais pensamos nele, analisando e dissecando o que vimos, melhor fica.
O cinema de Alain Resnais, então, é feito inteiro de um diálogo extremamente intimista com o público. Trabalhando com roteiros intrincados, e utilizando a montagem como uma espécie de prisma que refrata o real, o cineasta francês permite a qualquer pessoa reagrupar os fragmentos que recebe e encará-los como bem entenda. Hiroshima Meu Amor, A Guerra Acabou, Providence, Mélo: como na pintura cubista, a cada olhar percebemos que o mundo não possui postulados, mas sim inquietações, indagações, dúvidas.
Inúmeros são os exemplos de obras ressonantes que ficam por muito tempo depois de apreciadas. De Ingmar Bergman a John Carpenter, passando ainda por Monte Hellman, Jean Renoir e Carl Theodor Dreyer, assistir filmes não é uma atividade para simples entretenimento: alguém quer nos dizer algo de muita importância, basta ter vontade para entender.
Digressões
-O Rock In Rio 2011 já acabou há um tempo, mas algo ali não pode passar em branco: que show incrível fez Stevie Wonder. Enquanto aqueles que não conhecem seu trabalho esperavam algo insosso, um velhinho cego tocando em um pianinho canções bobas de amor, Stevie confirmou o merecido status de monstro sagrado da música pop no século 20. Emendou sonzaço atrás de sonzaço – música feita com M maiúsculo – e ainda mostrou ser um showman perfeito, que deixa o público na palma da mão e faz o que quer com ele. E sem falar na voz, praticamente com a mesma força e vigor dos anos 1970, auge criativo e musical do Maravilha. Não é preciso beber sangue, girar bateria e explodir o palco para se fazer música sublime.
-Alguns filmes vistos recentemente:
cotação de * a *****
Providence (Providence, França/Inglaterra, 1977), de Alain Resnais *****
Arte pura. Na 2ª edição do Cinefilia, Providence é o Filme Debate do mês. Vejam aqui – um dos textos é meu.
Alphaville (Alphaville, França, 1965), de Jean-Luc Godard ***
O grande trunfo de Godard é mostrar um futuro distópico e autoritário semelhante ao presente – o que torna a obra ainda mais crítica. No entanto, parece um simplório decalque do fabuloso livro 1984, de George Orwell. Deve crescer em uma revisão.
Interlúdio (Notorious, EUA, 1946), de Alfred Hitchcock *****
Um dos filmes mais amargos de Hitchcock., tão lúgubre e sério quanto O Homem Errado. Personagens infelizes, com vidas duras, em meio a mundo ainda mais duro e perverso. Hitchcock conjuga o pessimismo do noir com a tensão que mais ninguém sabia imprimir. Obra-prima, como tantos outros dele.
Agonia e Glória (The Big Red One, EUA, 1980), de Samuel Fuller ****
Talvez o filme mais conhecido de Fuller. Versão assistida foi a conhecida como A Reconstrução, exibida no Festival de Cannes de 2004 e lançada em DVD no Brasil. Agonia e Glória é o olhar definitivo de Fuller sobre a Segunda Guerra Mundial – ainda mais pelo fato de um dos personagens, o jovem soldado escritor fumante de charutos, representar o próprio diretor. Por ter um caráter episódio, dividido entre as diversas batalhas do pelotão da 1ª Divisão de Infantaria americana (a Big Red One do título original), o todo perde um pouco sua força. Mesmo assim, é (muito) acima da média dos filmes sobre o tema e conta com momentos de antologia, como a invasão do hospício.
“assistir filmes não é uma atividade para simples entretenimento: alguém quer nos dizer algo de muita importância, basta ter vontade de entender”. Exato. Muito bom.
Cumprimentos cinéfilos!
O Falcão Maltês