Terceiro post no blog, terceira citação a Samuel Fuller. Não é por menos: o diretor possui uma obra vigorosa, que fala diretamente aos sentidos do espectador. Lutou na Segunda Guerra Mundial, participando de diversas ofensivas contra alemães e italianos; na hora de filmar, postava a câmera como se estivesse em mais uma batalha, pronto para desnudar toda a hipocrisia moral e social existente na raça humana. Seus filmes são força bruta, mas não somente isso: são exemplos técnicos, de como enquadrar, movimentar, narrar por imagens.
Cão Branco, apesar de sua aparência frágil, é um de seus filmes mais contundentes. Nele, vemos o árduo trabalho de um adestrador – Keys, vivido por Paul Winfield – no intuito de reverter o instinto de um cão condicionado a atacar e matar negros. Detalhe sórdido: Keys é negro. O roteiro, escrito por Fuller, transforma-se em uma metáfora perfeita para uma análise profunda do racismo. A cena citada abaixo, já na sequência final do longa, constata que essa abominável doença é muito difícil de ser combatida e erradicada.
Contextualização necessária: Julie Sawyer (Kristy McNichol), ainda no início do filme, encontra o cão machucado e abandonado em uma estrada e o acolhe em sua residência. Cria, obviamente, cria um estreito laço com o animal, acompanhando todo o processo de descondicionamento realizado por Keys.
Após o teste que provaria o sucesso do adestrador, Julie abraça o cachorro. A câmera, colada nos rostos dos dois personagens, mostra o cão com uma aparência calma, relaxada, talvez por estar com aquela que cuidou de seus ferimentos, deu-lhe um lar e o alimentou. Começa então um travelling circular ao redor deles, bem vagaroso, acompanhado pela delicada trilha sonora composta por Ennio Morricone. Vemos o rosto da garota, aliviada pelo companheiro que ama não ser mais uma máquina de matar.
Somos todos surpreendidos, então, quando a câmera para. Ao invés, da tranquilidade mostrada anteriormente, o cachorro está com uma expressão raivosa, olhar assassino, sedento de sangue.
Nesse momento, Fuller nos lembra de algo aterrador: o racismo dificilmente age na superfície, mas em silêncio, por trás de uma família feliz, do carro do ano, do emprego cobiçado. Corrói o interior, mata por dentro, antes de se tornar visível, antes de alguém vociferar contra uma minoria, depois contra negros, judeus, homossexuais, latinos, muçulmanos. A História, e o cotidiano, provam isso. Uma vez tomado por essa praga, é impossível se desvencilhar dela.
E covenhamos: resumir essa teoria sobre uma das maiores vergonhas do Homem com apenas um movimento de câmera é, no mínimo, prova de competência acima do normal.
Com toda a certeza!
A sensação que causa aquele cachorro raivoso no final da cena… Incomoda, dói… Principalmente porque entendemos o quão pesado é o preconceito.
Adorei sua análise e seja Bem Vindo ao Grupo de Blogs de Cinema Clássico!
[…] É uma análise da última cena do espectacular filme O Cão Branco, de Samuel Fuller. Não vou descrevê-la aqui, você tem que ver como ela funciona: Detalhes de um mestre – “Cão Branco” (1982), de Samuel Fuller […]
Muito boa a sua análise. Mais ainda não entendi o porque ele foi atacar o outro homem e não o adestrador negro.
Oi, Nayra, obrigado pelo comentário! Boa pergunta. Faz tempo que assisti a Cão Branco, teria que rever pra lembrar dessa cena.